terça-feira, 29 de agosto de 2017

14 - Prestando Assistência

Meus companheiros de missão pareciam menos interessados em seguir o caso Dimas, durante a noite, inclusive Jerônimo, reservando-se para a continuidade do esforço no dia imediato, quando nos caberia transportá-lo até ao abençoado abrigo de Fabiano.

Não se verificava o mesmo quanto a mim.


Desembaraçando-me dos laços físicos, noutro tempo, não conseguira efetuar observações educativas para o meu acervo de conhecimentos. O choque sensorial no transe, para a minha personalidade ainda desatenta ante as questões do espírito eterno, impedira- me a análise minuciosa do assunto. Agora, porém, a oportunidade poderia fazer mais luz em minh'alma, quanto à posição dos recém-desencarnados, antes da inumação do envoltório grosseiro.


Expondo ao Assistente o meu propósito de aprender, recebi dele a mais ampla permissão.


Poderia visitar a residência de Dimas, à vontade, lá permanecendo durante as horas que desejasse.

A aquiescência de Jerônimo enchia-me de prazer. Não só pela ocasião de enriquecer-me na esfera prática, mas também porque o fato, em si, era bastante expressivo. Pela primeira vez, um companheiro de trabalho, com autoridade suficiente, concordava com o meu desejo de humílimo operário. O consentimento, portanto, representava preciosa conquista. Constituía a liberdade instrutiva, com a responsabilidade de minha consciência e a confiança de meus superiores hierárquicos. Deixando a Casa Transitória, em plena noite, vi-me, em breve, no ambiente doméstico onde o amigo se desfizera dos elos da matéria mais espessa.


Entrei. A casa enchia-se de amigos e simpatizantes, encarnados e desencarnados. Não se articulavam quaisquer serviços de defesa. Notei que havia trânsito livre pelos grupos de variadas procedências.


Em recuado recanto, ainda ligado às vísceras inertes pelo cordão fluídico-prateado, permanecia Dimas no regaço da genitora, ao pé de dois amigos que, cuidadosos, o assistiam.


A nobre matrona reconheceu-me, comovida, apresentando-me aos companheiros presentes.


Um deles, Fabriciano, acolheu-me, prestativo, interessando-se pelos informes atinentes ao desenlace. Relatei-lhe os trabalhos, pormenorizadamente. Em seguida, o interlocutor passou a explicar-
se:


РSempre tive por Dimas sincera admira̤̣o, pelo proveitoso concurso que soube oferecer-nos.


Integro a comissão espiritual de serviço que vem atendendo aos necessitados, por intermédio dele, nos últimos seis anos. Foi sempre assíduo nas obrigações, bom companheiro, leal irmão.

Surpreso com as referências, indaguei:


– Há, desse modo, comissões de colaboração permanente para os médiuns em geral?


– Não me reporto à generalidade – redarguiu o interlocutor –, porque a mediunidade é título de serviço como qualquer outro. E há pessoas que pugnam pela obtenção dos títulos, mas desestimam as obrigações que lhes correspondem. Gostariam, por certo, do intercâmbio com o nosso plano, mas não cogitam de finalidades e responsabilidades. Em vista disso não se estabelecem conjuntos de cooperação para os médiuns em geral, mas apenas para aqueles que estejam dispostos ao trabalho ativo. Há muitos aprendizes que não ultrapassam a fronteira da tentativa, da observação.


Desejariam o caminho bem aplainado, exigindo a convivência exclusiva dos Espíritos genuinamente bondosos. Experimentam a luta construtiva através de sondagens superficiais e, à primeira dificuldade, abandonam compromissos assumidos.


A aquisição da fortaleza moral não prescinde das provas arriscadas e angustiosas.

Entretanto, em face das exigências naturais do aprendizado, dizem-se feridos na dignidade pessoal. Não suportam a aproximação de infelizes encarnados ou desencarnados, estacionando à menor picada de dor. Para semelhantes experimentadores, seria extremamente difícil a formação de equipes eficientes, representativas de nosso plano. Não se sabe quando estão dispostos a servir.


Se recebem faculdades intuitivas, pedem a incorporação; se contam com a vidência, querem a possibilidade de exteriorizar fluidos vitais para os fenômenos de materialização.


Escutei as observações sensatas do novo amigo e, registrando-lhe a nobreza d'alma, passei a considerações íntimas em torno da tarefa que nos levara até ali.


Porque se formara expedição destinada a socorro de servidor que dispunha de amigos de tamanha competência moral? Fabriciano demonstrava conhecimentos elevados e condição superior. O obsequioso amigo, porém, evidenciando extrema acuidade perceptiva, antes que eu fizesse qualquer pergunta inoportuna, acrescentou:


– Não obstante nossa amizade ao médium, não nos foi possível acompanhar-lhe o transe. Temos delegação de trabalho, mas, no assunto, entrou em jogo a autoridade de superiores nossos, que  resolveram proporcionar-lhe repouso, o que não nos seria possível prodigalizar-lhe, caso viesse diretamente para a nossa companhia.


A palestra conduzia-se a interessantes ângulos do problema da morte. Seduzido pelas considerações, interroguei sobre o que já sabia, mais ou menos, a fim de poder penetrar particularidades
mais significantes:


РNem todas as desencarna̵̤es de pessoas dignas contam com o amparo de grupos socorristas?


– Nem todas – confirmou o interlocutor, e acentuou –, todos os fenômenos do decesso contam com o amparo da caridade afeta às organizações de assistência indiscriminada; no entanto, a missão especialista não pode ser concedida a quem não se distinguiu no esforço perseverante do bem.


– Todavia – objetei, curioso, tangendo a corda que mais me interessava no assunto –, não há casos de criaturas, essencialmente bondosas, que se libertam dos laços físicos – mais ou menos entrosados em comissões de serviço espiritual de natureza superior – sem que haja missões salvacionistas, previamente designadas para socorrê-las?


Após breve pausa, acrescentei para fazer-me mais claro:


– Vamos que Dimas estivesse em ligação recente com a sua comissão de trabalho e desencarnasse sem o cuidado dum grupo socorrista: seria deixado à mercê das circunstâncias?


Riu-se Fabriciano, com franqueza, e retrucou:


– Isso poderia acontecer. Temos precedentes. De maneira geral, ocorrem semelhantes casos com os trabalhadores aflitos por conseguir de qualquer modo a desencarnação, alegando necessidades de repouso. Muitas vezes, no fundo, são criaturas bondosas, mas menos lógicas e pouco inteligentes. Na semana finda, por exemplo, observamos um caso dessa natureza. 


Respeitável senhora, jovem ainda, pelas disposições sadias que demonstrou no campo da benemerência social, foi ligada a dedicada corrente de serviço, organizada por amigos nossos. Verificando-se, contudo, pequenas rusgas entre ela e o esposo, e tendo conhecimento da imortalidade da vida, além do sepulcro, desejou a pobre criatura ardentemente morrer. Tolas leviandades do marido bastaram para que maldissesse o mundo e a Humanidade. Não soube quebrar a concha do personalismo inferior e colocar-se a caminho da vida maior. Pela cólera, pela intemperança mental, criou a idéia fixa de libertar-se do corpo de qualquer maneira, embora sem utilizar o suicídio direto. Conhecia os amigos espirituais a que se havia unido, mas, longe de assimilar-lhes ajuizadamente os conselhos, repelia- lhes as advertências fraternas para aceitar tão somente as palavras de consolação que lhe eram agradáveis, dentre as admoestações salutares que lhe endereçavam. 

E tanto pediu a morte, insistindo por ela, entre a mágoa e a irritação persistentes, que veio a desencarnar em manifestação de icterícia complicada com simples surto gripal. Tratava-se de verdadeiro suicídio inconsciente, mas a senhora, no fundo, era extraordinariamente caridosa e ingênua. Não se recebeu qualquer autorização para conceder-lhe descanso e muito menos auxílio especial. Os benfeitores de nossa esfera, apesar de eficiente intercessão em beneficio da infeliz, puderam afastá-la das vísceras cadavéricas, há dois dias, em condições impressionantes e tristes. 

Não havendo qualquer determinação de assistência particularizada, por parte das autoridades superiores, e porque não seria aconselhável entregá-la ao sabor da própria sorte, em face das virtudes potenciais de que era portadora, o diretor da comissão de serviço, a que se filiara a imprevidente amiga, recolheu-a, por espírito de compaixão, em plena luta, e ela se foi, de roldão, a trabalhar por aí, ativamente, em condições muito mais sérias e complicadas.

A elucidação atingira-me, fundo.


Informara-me sobre o que desejava. A lei divina, de fato, perfeita em seus fundamentos, é igualmente harmoniosa em suas aplicações.


Fabriciano, estampando belo sorriso, aduziu: – Não frutifica a paz legítima sem a semeadura necessária.


Alguém, para gozar o descanso, precisa, antes de tudo, merecê-lo.


As almas inquietas entregam-se facilmente ao desespero, gerando causas de sofrimento cruel.


Logo após, contemplando o recém-desencarnado, como a indicar que deveríamos centralizar todo o interesse da hora no bem estar dele, considerou, acariciando-lhe a fronte:


– Nosso amigo repousa agora, terminada a tormenta das provas incessantes. Está enfraquecido, o pobrezinho. A sensibilidade, posta a serviço da obrigação bem cumprida, castigou-lhe a alma, até ao fim; todavia, plantou a fé, a serenidade, o otimismo e a alegria em milhares de corações, estabelecendo sólidas causas de felicidade futura. Por enquanto, permanecerá na posição de ave frágil, incapaz de voar longe do ninho.


– Felizmente – aventou a genitora, satisfeita –, vem melhorando de modo visível. Os resíduos que o ligam ao cadáver estão quase extintos.


Relanceou o olhar pelos ângulos da modesta residência e acrescentou:


– Se fosse possível receber maior cooperação dos amigos encarnados, ser-lhe-ia muito mais fácil o restabelecimento integral.


No entanto, cada vez que os parentes se debruçam, em pranto, sobre os despojos, é chamado ao cadáver, com prejuízo para a restauração mais rápida.


– Lamentavelmente, porém – tornou Fabriciano –, nossos irmãos encarnados não possuem a chave de reais conhecimentos para organizar ação adequada a esta hora.


– Em vista disso – revidou a genitora, conformada –, insisto para que Dimas durma, embora o sono, que poderia ser calmo e doce, esteja povoado de pesadelos. Diante da surpresa que me absorvia, o companheiro apressou-se a esclarecer-me:


– As imagens contidas nas evocações das palestras incidem sobre a mente do desencarnado, mantido em repouso depois de rápido mergulho na contemplação dos fatos alusivos à existência finda.


Não somente as imagens. Por vezes, nossos amigos presentes, fecundos nas conversações sem proveito. exumem, com tamanho calor, a lembrança de certos fatos, que trazem até aqui alguns dos protagonistas já desencarnados.

As afirmações ouvidas incitaram-me a curiosidade. Fabriciano, entretanto, desejando prodigalizar-me experiência direta, aconselhou:


– Espere alguns minutos na sala contígua, onde os despojos recebem a visitação.


Obedeci.


O velório apresentava o aspecto usual. Flores perfumadas, semblantes sisudos e conversações discretas.


Ao pé do cadáver, propriamente considerado, os amigos sustentavam reserva e circunspecção. A poucos passos, todavia, davam- se asas ao anedotário vibrante, em torno do amigo em trânsito para o “outro mundo”. Pequenas e grandes ocorrências da vida do “morto” eram lembradas com graça e vivacidade.


Acerquei-me de roda compacta, em que se falava a respeito dele.


Certo rapaz dirigiu-se a cavalheiro muito idoso, perguntando:


– Coronel, recebeu a conta?


– Por enquanto, não – respondeu o velhote interpelado, preparando fumo de rolo para cigarro à moda antiga –, mas não me preocupo pela demora. Dimas foi sempre bom camarada e os filhos não olvidarão o compromisso paterno. Questão de tempo... 


Interessado em ressaltar as qualidades distintas do “falecido” e revelando suas boas disposições de historiador municipal, prosseguiu:

РDimas era um homem interessante e excepcional. Sempre lhe invejei a serenidade. Em mat̩ria de prud̻ncia, raras pessoas conheci semelhantes a ele.


É verdade que nunca me dei a estudos espiritistas, mas confesso que, ao lhe observar a maneira de proceder, sempre desejei conhecer a doutrina que lhe formava o caráter.

Até aí, tudo muito bem. Embora a invocação dos débitos do “morto”, o credor apenas pronunciava palavras de estímulo e paz.


Todavia, no estado atual da educação humana. é muito difícil alimentar, por mais de cinco minutos, conversação digna e cristalina, numa assembléia superior a três criaturas encarnadas.


O comentarista modificou o diapasão de voz, olhou na direção do cadáver e observou, em tom confidencial:


– Poucos homens foram de boca segura como este.


Conheci Dimas, faz muitos anos, e estou certo de que foi testemunha ocular de pavoroso crime, que nunca se desvendou para os juízes da Terra.

Após ligeira pausa, acendeu o cigarro e perguntou, reaguçando a curiosidade dos ouvintes:


– Nunca souberam?


Os presentes mostraram silenciosa negativa.


– Vai para trinta anos – continuou o narrador –, Dimas residia ao lado de nobre família, que guardava consigo valiosos patrimônios da coletividade, relativamente à orientação pública. 


Desse agrupamento doméstico, superiormente conceituado na apreciação geral, emanavam ordens e benefícios da mais elevada expressão para o bem-estar de todos. Como não ignoram, há três decênios a vida no interior ainda conservava expressiva herança do Brasil imperial. A economia centralizada mantinha a “casa grande” simbólica, onde se traçavam roteiros para o serviço popular.

Situado na vizinhança de residência feudal como essa, nosso amigo levava existência humilde de trabalhador, organizando o futuro de homem
de bem.


O cavalheiro, insciente dos problemas do espírito, enunciou nomes, relacionou datas e lembrou brejeiramente certos pormenores, prosseguindo com maliciosa jocosidade:


– Certa noite, pela madrugada, conhecido chefe político saía do palacete residencial pelos fundos, acompanhado de uma senhora que aparentava excessiva despreocupação consigo mesma, ao despedir-se com intempestiva manifestação de afeto. Terminado o estranho adeus e, vendo-se sozinho, o “Dom Juan” deu alguns passos para a retirada, espiou, cauteloso, em torno, e ia continuar a marcha, quando reparou que alguém lhe observara a intimidade com a esposa de respeitável amigo. Era modestíssimo operário, que talvez estivesse ali por força de circunstâncias inapreciáveis.


O político alcançou-o, dum salto. Homem de compleição robusta e paixões violentas, aproximou-se do espectador inesperado e interpelou-o, brutalmente, ao que o mísero respondeu, humilde:


РDoutor Рṇo estou espreitando, juro-lhe!


– Pois morrerá, de qualquer modo – adiantou o atlético agressor, em voz sumida de cólera.


Agarrou-o pelo paletó e acentuou, de dentes cerrados:


– Vermes que perturbam, devem morrer.


– Não me mate, doutor, não me mate! – rogou o infeliz – Tenho mulher e filhos! Saberei respeitá-lo!...


Não valeu à vítima dobrar-se de joelhos, na súplica, porque o homem terrível, cego de fúria, tomou a arma e desfechou-lhe certeiro tiro no coração, afastando-se precípite. Dimas, tendo observado os fatos a curta distância, gritou, fazendo- se ouvir pelo assassino, que o reconheceu pelas exclamações.


Em seguida, correu no sentido de amparar o ferido, que, entretanto, nem chegou a gemer. Tendo-se aproximado do assassinado, quando outras pessoas, em roupas brancas, acorriam igualmente à pressa, para verificar o ocorrido, manteve-se a cavaleiro de qualquer atitude suspeitosa; no entanto, chamado a esclarecimento pelas autoridades, ele, que tudo sabia, nada revelou.


Protegeu o morto nos funerais, dispensou-lhe extremos cuidados, extensivos à família, portou-se como cristão fiel, esquivando-se, contudo, ao fornecimento de quaisquer indícios para que o criminoso fosse capturado, alegando desconhecer qualquer minúcia dos fatos que deram motivo ao acontecimento. E o caso policial foi
encerrado, na suposição de latrocínio. A única testemunha, que era ele, considerava preferível o silêncio ao escândalo que traria enormes dissidências domésticas e sociais.


O narrador fixava os despojos e acentuava:


РBoca segura! Ṇo conheci homem mais discreto.
Certo ouvinte indagou, brejeiro:


РMas, coronel, como veio a saber das particularidades, se Dimas ṇo chegou a denunciar?


O interpelado fez um gesto de franca satisfação e acrescentou:


– Vantagem da boa amizade com os sacerdotes. 


Meu velho amigo, o padre F... que Deus guarde, contou-me o fato, sumamente impressionado. Ouviu o assassino, em confissão, antes da morte dele e obteve todos os pormenores da obscura ocorrência. O homicida, cuidadoso na exposição das faltas, não se esqueceu de nomear Dimas ao vigário, como exclusiva testemunha do pecado mortal cometido. O padre, contudo, excelente amigo, cheio de experiência do mundo, não trouxe o caso a público. As pessoas envolvidas no drama deixaram descendência distinta e seria crueldade rememorar acontecimento tão triste.

O narrador estampou curiosa expressão no rosto e rematou, apagando o cigarro:


– Tudo passa... Morreram a vítima, a adúltera, o assassino, o confessor e, agora, a testemunha. Certo, haverá lugar, fora deste mundo, para fazer-se a justiça.


Nesse momento, horrível figura, seguida de outras, não menos monstruosas, surgiu de inesperado. Acercando-se do leviano comentador, ouviu-lhe, ainda, as últimas palavras, sacudiu-o e gritou:


– Sou eu o assassino! Que quer você de mim? Porque me chama? É juiz?!


O narrador não enxergara o que eu via, mas seu corpo foi atingido por involuntário estremeção, que arrancou abafado riso dos presentes.


Logo após, o homicida desencarnado, atraído talvez pelo cheiro forte das flores reunidas na eça improvisada, teve a perfeita noção do velório.


Abalou-se, precipitado, pondo-se na contemplação do morto.

Reconheceu-o, estampou um gesto de profunda surpresa, ajoelhou- se e gritou:


– Dimas, Dimas, pois também tu vens para a verdade? Onde estás, bom amigo, que me velaste a falta com o véu da caridade sem limites? Socorre-me! Estou desesperado! Onde encontrarei minha vítima para suplicar o perdão de que necessito? Ajuda-me, ainda! Tem compaixão!


Deves saber o que ignoro! Socorre-me, socorre-me!...

Ao lado do infeliz, em rogativa, diversas entidades sofredoras permaneciam extáticas. Mas Fabriciano surgiu inesperadamente e ordenou aos invasores afastamento imediato.


Limpa a câmara, o novo amigo dirigiu-se a mim, observando:


РGaranto que este grupo entrou nesta casa por invoca̤̣o direta.


Narrei-lhe, impressionado, o que vira.


Ouviu-me calmamente e ponderou:


– A observação, feita por nós mesmos, é sempre mais valiosa.


Dimas, não obstante dedicado à causa do bem e compelido a grande esforço de cooperação na obra coletiva, descuidou-se de incentivar a prática metódica da oração em família, no santuário doméstico. Por isso tem defesas pessoais, mas a residência conserva- se à mercê da visitação de qualquer classe.


A elucidação era significativa. Comecei a compreender a razão do sentimentalismo prejudicial da família inconformada. Desejando, porém, fixar o aprendizado da noite sobre assunto atinente à desencarnação, perguntei:


– Nosso amigo recém-liberto terá ouvido a súplica do irmão desventurado?


– Geme sob terrível pesadelo, nos braços maternos – explicou Fabriciano, solícito –, ao recordar o fato relatado. Desde alguns minutos acompanhamos a agitação dele, reparando que recebia choques desagradáveis, através do cordão final.


– Ouvindo e vendo os quadros invocados? – insisti, perguntando.


РṆo chegou a ver, nem a ouvir, integralmente, em face da perturba̤̣o espont̢nea, mas vislumbrou, sentiu, oprimiu-se e torturou-se, prejudicando a reconquista de si mesmo. As for̤as mentais esṭo revestidas de maravilhoso poder. Indicando os grupos que continuavam conversando, acentuou, sem aspereza:


– Nossos amigos da esfera carnal são ainda muito ignorantes para o trato com a morte. Ao invés de trazerem pensamentos amigos e reconfortadores, preces de auxílio e vibrações fraternais, atiram aos recém-desencarnados as pedras e os espinhos que deixaram nas estradas percorridas. É por isso que, por enquanto, os mortos que entregam despojos aos solitários necrotérios da indigência são muito mais felizes.


Ainda não havia terminado, de todo, as considerações, quando a esposa de Dimas, num acesso de pranto, levantou-se do leito em que repousava e adiantou-se para o cadáver, repetindo-lhe o nome, comovedoramente:


РDimas! Dimas! como ficarei? Estaremos separados, enṭo, para sempre?...


Como Fabriciano se dirigisse apressado para o quarto humilde em que permanecia o desencarnado, acompanhei-o.


A genitora do médium fazia esforços para contê-lo, mas debalde. Pelo fio prateado, estabelecera-se vigoroso contacto entre ele e a companheira, porque Dimas se ergueu, cambaleante, apesar do carinho materno. Estava lívido, semilouco. Avançou para a sala mortuária, rogando paz, mas antes que pudesse aproximar-se muito dos despojos, Fabriciano aplicou energias de prostração na esposa imprudente, que foi novamente conduzida ao leito, agora sem sentidos, enquanto Dimas voltava ao regaço maternal, menos aflito.

O amigo esclareceu-me, sereno:


– Há situações em que o drástico deve ser medida inicial.


Nosso irmão muito fez pela harmonia dos outros, durante a existência, e merece libertação pacífica. Sinto-me, pois, no dever de garanti-lo para que se desembarace dos últimos resíduos que ainda o inclinam à matéria densa. Outros amigos e afeiçoados do médium chegaram ao ambiente doméstico, interessados em ajudá-lo e, como a noite ia muito alta, despedi-me dos companheiros, pondo-me de regresso ao acolhedor asilo de Fabiano.


No outro dia, ao me avistar, disse-me o Assistente Jerônimo, após a saudação inicial:


– Espero, André, que o velório lhe tenha trazido úteis e instrutivos ensinamentos.


Sim, o estimado Assistente falava com muita propriedade e razão. Eu aprendera muito, durante a noite. Aprendera que as câmaras mortuárias não devem ser pontos de referência à vida social, mas recintos consagrados à oração e ao silêncio
.

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